O Beijo da Fénix

O Renascimento sob o Signo da Fénix, por Isa e Neuza

8/23/2006

Porque é possível


"Ouvia-a por vezes chorar na varanda se julgava que já estávamos a dormir (...), sozinha no escuro, se julgava já ninguém a poder ouvir. E eu escutava, posso dizer-lhe. (...) A mãe era um silêncio impossível de quebrar, a mãe era um nada absoluto (...) marcas roxas, umas por cima das outras (...) todas as noites, os anos todos, riscos de sangue pisado uma e outra vez. (...) E não serviu de nada avisá-la, assim a mãe vai morrer, mãe. (...) Prioridades do coração, que não é afinal assim tão grande como nos ensinam. (...) E jurei que não haveria de morrer como a mãe, mãe. (...) E não me abriria nunca como as conchas, pela força enferrujada de uma faca romba, a forçar a carne desistida. (...)
Queria dizer-lhe que nas minhas noites não há animais que me esporeiam, que não me fico em silêncio para não me ouvirem suspirar. Queria ter-lhe dito que me avisei a tempo e não hei-de morrer como a mãe, mãe.
Não fecho os olhos com força de cada vez que me deito, não tenho de esconder um corpo lancinante, adormeço em paz, aquecida, confortada, e os braços são para abraçar, mãe.

Porque é possível, embora seja tarde para si, é possível não morrer as noites todas.

Todas as noites de uma vida, todas as noites dentes e saliva e um punho de garras, abertas fechadas abertas, que desaba sobre nós."

(in Rodrigo Guedes de Carvalho - Mulher em Branco)

Isabel Reis Santos

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]

<< Página inicial