O vendedor de sonhos
Neve. Podia contar-vos a história da neve, do meu país inventado, o Canadá, e de como ela pode derreter-se nos nossos corpos.
“Cem anos de solidão”, dizes-me, Gabriel. Soletro cada letra do teu nome. Também eu perdi as minhas asas de anjo, mas, ao contrário de ti, nunca tive nome de anjo. Podes chamar-me de Manuel.
Não confundas cem anos de uma “solidão” transbordante de acontecimentos e de pessoas com cem anos de uma vida.
Em cada pegada que deixo, a cada passo que dou, a neve derrete-se e tudo se resume a esta estúpida rocha estéril. Ninguém pode compreender. Acredito que nem vocês mesmos compreendam.
Olho para trás e na rocha morta consigo ainda rever pequenos montes de relva, vestígios de poças de vida, pisados por estas botas gastas, sujas de terra e ressentimento, onde guardei durante anos os meus pés de caixeiro-viajante.
Ser vendedor de sonhos sempre foi difícil, principalmente aqui, na Ilha do Farol, onde a relva que brotava da rocha era pisada por todos, onde existia um farol sem luz.
Nunca consegui vender nenhum dos meus sonhos. Ninguém quer comprar os sonhos dos outros numa terra onde nem os seus próprios sonhos conseguem encontrar.
Às vezes dou por mim a olhar o mar; tão cintilante sob os meus olhos, tão provocador. Como ele engana a boca da rocha de gargalhada insuportável. Como a consome. Como a cala.
O mar, o mar camaleónico. Mar bom, mar mau; como eu, como todo o ser humano.
Questiono-me – o mar terá sonhos? Para onde vão os sonhos das pessoas que ele engole? Limitar-se-á a rebentá-los contra a rocha ou servir-lhe-ão de alimento, como a sua própria espuma, que engole ao recolher-se da areia?
A água é tão cintilante. Tão tentadora. É um espelho de vidros que não se quebram. Repentinamente, desiquilibro-me e caio, amparando todo o peso do meu corpo em apenas uma das mãos.
O sangue jorra da mão rasgada e leva-me de volta a onde tudo começou. Oiço a minha mãe a chorar, oiço a minha mãe a gritar e dentro de mim tudo ainda tão silencioso. O sangue jorrava nesse dia como nunca em lugar nenhum; no dia em que eu ainda era o mar por dentro.
Mas, a título de infelicidade, perdi as chaves do meu carro; e sem chaves não há como abrir portas; e sem portas não há fugas. Ficamos de dentro ou de fora. Escolhemos sem opção.
A neve continua a derreter-se sob as minhas botas sujas e dos sonhos, que tive um dia para vender, já nem sei. Talvez se tenham perdido com as chaves do meu carro - cabeça velha e demente – ou, talvez se tenham mantido fechados na esperança vã do auto-esquecimento.
Olho a minha mão de sangue. Levo-a à boca. Provo do meu próprio sangue e pergunto a mim mesmo se será humano.
Nesta Ilha do Farol sem céu, onde o som das ondas do mar é inventado, onde permaneci encurralado durante cem anos, não há nem nunca houve sonhos para se vender. Não existem sonhos na morte.
Levanto-me a custo, devido à idade, e caminho, devagar e sem medo, de mão dada com uma criança, para a beira da ravina. O momento mais feliz da minha vida. As gotas de sangue caem de uma forma tão artística; talvez humana, quase divina. Eu sou ele. Nasço e junto-me ao mar.
Oferecer um sonho é sempre um acto de caridade.
Isabel Reis Santos
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